quarta-feira

Tudo passa

Naqueles dias em que acordava de boca cheia, pronta para o que se esperava ser uma manhã triunfante como todas as manhãs, onde cada passo pesado do corpo a redimia; nesses dias a auto-observação não a incomodava, não encontrava melhor confronto como o do espelho; afinal de contas estava a olhar para si mesma bem cedo, de manhã, sem auto-avaliações básicas de um fim de dia. Dali até sairem palavras de estímulo não faltaria muito; sílabas mais ingénuas que um livro de auto-ajuda, fáceis de fabricar pela manhã, fáceis de aceitar porque o Ego não se importa, o Ego pede.
Mas esse dia era diferente e simultaneamente igual a todos os aspectos de uma manhã que já não é manhã.
Já passa o meio dia e nada lhe pesa mais do que convencer o corpo a abraçar uma nova agonia. A sensação de estar viva incomoda-a tanto como uma sinfonia de Mahler, daquelas que nunca mais acabam.
Apoia os pulsos na cama e pensa que tudo passa, é um estímulo. Levanta os olhos e lá fora está tudo na mesma...
Até a chegada da nova estação não a entusiasma mais. Afinal de contas, já no ano passado a pode ver, igual a si mesma, a sempre pirosa primavera.

 
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